Sereno, cultivo de “germes” e por que precisamos “aprender a desaprender”

Por Tito Tortori*

Já dá para ouvir as músicas típicas das festas Juninas tocando ao longe… Esse período sempre me lembra minha avó, alertando para ter cuidado com o “sereno”. Mas, afinal, o “sereno” existe? Será que ele é um tipo de “miasma”, esperando para se jogar, em uma noite fria, sobre a cabeça de algum incauto pouco protegido por um casaquinho e um gorro quentinho? Minhas primeiras aulas do 8º ano são direcionadas para a discussão sobre tipos de conhecimentos e a caracterização do conhecimento científico como uma forma de “ler o mundo”.  Claro que, para falar com jovens sobre teorias, regularidades, pseudociência, método tentativa-erro e o poder de predição em Ciências da Natureza, eu preciso visitar aspectos como a “Lei de Murphy”, o fogo-fátuo, a queda da torrada com a geleia para baixo, o famoso “pé no chão frio causa gripe” e, claro, o “já está provado pela Ciência”, um campeão no modelo mental dos estudantes!

De fato, uma aprendizagem significativa[1] em Ciências exige, segundo David Ausubel, que partamos sempre dos conhecimentos prévios dos estudantes, ou seja, daquilo que eles já sabem, uma vez que esses saberes são uma variável fundamental para aprendizagens que agregam novas conexões nos modelos mentais. Nesse ponto, volto ao sereno, pois ainda há muitos jovens que aprenderam sobre o sereno com seus entes queridos, como eu com minha avó Alzira. Então, de um lado, devemos considerar que esses saberes prévios existem e que, muitas vezes, estão consolidados como “âncoras” cognitivas estáveis em nossos modelos mentais. Mas, é importante saber que, em muitas circunstâncias, os conhecimentos prévios “ancorados” em concepções espontâneas, alternativas, derivadas, por exemplo, do senso comum (novamente o bom e velho senso comum!) podem representar uma “variável bloqueadora”. Ausubel diria: temos que operar uma assimilação obliteradora, ou seja, ensinar o aluno a desaprender.

O caso do “pé no chão frio causa gripe” é uma situação clássica de conhecimento prévio “bloqueador”, que emperra as aprendizagens sobre as causas de doenças infectocontagiosas, como gripes e resfriados. Até é uma boa forma de avançar no debate, mas realmente dá para perceber uma certa frustração dos estudantes, ao questionar se “pé no chão frio da cozinha não causa resfriado?”, pois, como sabemos, os resfriados não são provocados pelo frio, mas sim por rinovírus e o adenovírus que invadem nossas vias respiratorias. Nessa altura do campeonato, eu discuto com eles a importância das teorias científicas para o avanço da Ciência e afirmo que mesmo uma teoria “inadequada”(Teoria dos miasmas[2]) é melhor do que não ter teoria alguma. Então, tendo sido uma teoria científica, os “miasmas”, que “arrastavam correntes” desde o século XVII, ainda povoam os medos de boa parte do senso comum. Quem nunca se pegou usando a “virada do tempo” para explicar um resfriado que está rondando? Mas, o que a maioria não sabe é que a teoria dos Miasmas foi substituída, em uma mudança paradigmática traumática, ao longo do séc. XIX, pela teoria dos Germes de Louis Pasteur. Nesse ponto do texto, devo lembrar que o frio, a chuva, a umidade e o famoso sereno também não são mais aceitos pela medicina moderna como causas das gripes e resfriados, apesar do nome quase “intuitivo” do segundo.

Para ajudar a destravar esse “saber bloqueador”, que associa as doenças infectocontagiosas aos miasmas[3], todo ano, os estudantes participam de uma pesquisa prática, partindo da hipótese de trabalho de que existem lugares potencialmente “limpos” e locais predominantemente “sujos”. Em duplas, os estudantes são divididos para coletar amostras ambientais de lugares como o teclado do computador, o quadro da sala, a mesa da cantina, a cuba do bebedouro, até o chão do banheiro, sola de vários sapatos, notas de dinheiro, vaso sanitário, ralo da cantina e etc…

Essa atividade prática atua como um organizador prévio em relação aos saberes dos estudantes, posto que podem atuar como uma “ponte cognitiva” entre aquilo que o estudante já sabe (teoria dos miasmas presente no senso comum) e o novo conceito que pretendemos que ele aprenda de forma significativa (teoria dos germes).

Assim, é fundamental entender que precisamos investir no “letramento” em Ciências, para além da “alfabetização científica. Dessa forma, somos obrigados a concordar com Richard Feynman, um dos mais importantes físicos do século XX e prêmio Nobel, que esteve no Brasil na década de 50 e criticou o ensino de Física por ser baseado na “decoreba”, sem estimular o raciocínio científico ou a observação empírica. Em relação ao ensino médio, ele criticou o ensino baseado na memorização, a ausência de atividades experimentais, a pouca flexibilidade curricular e a falta de interação e discussão dos estudantes entre si, além da má qualidade dos livros didáticos e o salário baixo dos professores.  Ou seja, precisamos que o ensino de Ciências da natureza seja mais imersivo e questionador do que propedêutico e memorístico.

Por isso, acreditamos que atividades práticas de redescoberta tem o efeito “saca-rolhas”, por atuarem como organizadores prévios, permitindo que os estudantes questionem as concepções espontâneas presentes no senso comum, que levam boa parte das pessoas letradas a continuar acreditando nos miasmas presentes no “sereno”, na chuva, no frio, no gelado em detrimento dos nossos saberes sobre os “germes”  ̶  atualmente conhecidos como vírus, bactérias, protozoários e etc.

Atividade práticas, como o cultivo de microrganismos, colocam os estudantes no centro da “cena” do processo de ensino-aprendizagem e permitem a contextualização das clássicas explicações maternas e paternas (desculpa aí, mãe!) sobre o poder dos casacos, cachecóis, meias e guarda-chuvas, na defesa de doenças infectocontagiosas nas vias aéreas superiores, como gripes e resfriados. O surgimento de colônias de microrganismos nos potes de gelatina kanten agar agar ajuda os estudantes a perceber que vivemos em um mundo de Matrix, em que os microrganismos existem tanto em lugares tipicamente limpos, quanto em lugares mais suspeitos e, contra esses “germes”, mais vale lavar a mão do que colocar um cachecol!

Atividades práticas dessa natureza são pródigas em permitir que os estudantes:
  • Formulem hipóteses sobre os eventos estudados;
  • Confrontem explicações aprioristas superficiais com modelos mais explicativos;
  • Reformulem seus modelos mentais, gerando a assimilação obliteradora[1], ou seja, esquecimento de saberes estáveis pouco explicativos;
  • Estabeleçam novas “âncoras cognitivas”[2] mais explicativas que enfraquecem os saberes menos explicativos oriundos do senso comum;
  • Tirem o cérebro daquilo que chamo de modo “chama-piloto”, pelo qual apenas ouvem e pouco processam. Nessas atividades, eles são “convidados” a observar, registrar, identificar, criar hipóteses, inferir, deduzir, formular, questionar e outras funções mentais superiores muito importantes para o aprendizado.

*Tito Tortori é biólogo e professor de Ciências e Biologia da EDEM desde 1998. Apaixonado pelo conhecimento científico e Mestre em Ensino de Biociências e Saúde pela FIOCRUZ, é “caçador” de aprendizagens significativas e estratégias didáticas inovadoras, como o projeto MUDAMATA, o “Jogo da tabela periódica”, o cultivo de microrganismos, a dinâmica da “queda da torrada” versus a “lei de Murphy” e o experimento das “bolhas explosivas”.

 

[1] David Ausubel foi um psicólogo estadunidense que estudou a maneira como pessoas aprendem novos saberes e de quais os requisitos para sua incorporação à estrutura cognitiva do estudante de maneira substantiva e não arbitrária com aquilo que o aprendente sabia anteriormente. Para saber mais leia sobre a história de John Snow https://www.bbc.com/portuguese/geral-53376925

[2] A ideia de que os miasmas (frio, vento, cheiro fétido etc) causavam doenças ainda era usada no combate à pandemia de cólera da Paris do séc. XIX.

[3] Sugiro a leitura do artigo “Olhe esse vento nas costas, menino!” de Drauzio Varella https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/olhe-esse-vento-nas-costas-menino-artigo/

[4] Na teoria de Ausubel, a assimilação obliteradora pode ser traduzida como o “aprender a desaprender” ou  “aprender a esquecer”, quando uma “âncora cognitiva” estável, acoplada em um modelo mental menos explicativo, atrapalha a ressignificação por modelos mais explicativos.

[5] O termo “subsunçores” foi usado por Ausubel para caracterizar as “âncoras” cognitivas que temos em nossos modelos mentais que são saberes estáveis a partir dos quais incorporamos novos saberes. Ausubel nos alerta que a aprendizagem significativa não é sinônimo de aprendizagem correta e que nossa matriz mental é povoada por diversos saberes estáveis equivocados.

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