Akranoplano, diferenciação progressiva e modelos mentais

Por Tito Tortori*

O que é um Akranoplano? Ou ekranoplan na língua inglesa. Sempre que começo a falar sobre Ciências aos alunos do 8º ano, eu cito os akranoplanos! Faço esse desafio quando quero mostrar que ao responder sobre uma pergunta de um tema pouco conhecido, nós lançamos mão do “bom e velho” senso comum.  Como não existe nada do senso comum que ajude a associar aos Akranoplanos, eles(as) ficam mudos(as). O Senso comum é uma excelente ferramenta para “tocar a vida”, sem fazer o cérebro “pegar fogo”, como por exemplo quando subimos uma escada, abrimos uma porta ou falamos ao telefone. Mas, quando se trata de explicar o porquê de certos fenômenos incomuns em nosso cotidiano, este mesmo senso comum não ajuda em quase nada e ainda pode atrapalhar bastante. Aprender o que é a Ciência e saber que estamos mergulhados nesse mundo do “dizem que”, “ouvi dizer”, “falaram”, típico do senso comum… Assim, se eu pergunto aos estudantes como os antigos moradores da Inglaterra de 2000 a.C. colocaram as pedras(sarsens) de dezenas de toneladas de Stonehenge nos seus locais, muitas vezes ouço como resposta … “foram os Ets não, professor?

Ensinar e aprender Ciência é mais do que apenas saber o que é um Akranoplano ou entender que os povos antigos dominavam muitos conhecimentos. Se eu informar repetidamente: “um Akranoplano é um veículo híbrido que se desloca no sistema ar-água usando o efeito-solo das aves aquáticas!” … “um Akranoplano é um veículo híbrido que se desloca no sistema ar-água usando o efeito-solo das aves aquáticas!” … “um Akranoplano é um veículo híbrido que se desloca no sistema ar-água usando o efeito-solo das aves aquáticas!”, ao final de umas 5 repetições  ̶  a velha técnica mnemônica   ̶  muitos serão capazes de repetir essa definição de almanaque desse veículo.

Saber “recitar” uma definição não significa conhecer de fato aquele campo do conhecimento.

Assim, ensinar e aprender Ciências envolve uma perspectiva crítica de currículo, que tentará usar estratégias didáticas capazes de favorecer a discussão sobre aspectos fundamentais dos conteúdos escolares de ciências, como: “o que”, “como”, “por que”, “quando” e “para que”, superando as “limitações do ensino passivo, fundado na memorização de conceitos, definições e de classificações, sem qualquer sentido para o aluno (PCNs, 1998, p.62)[1].

Assim, o projeto curricular de Ciências na EDEM desafia a lógica de uma didática linear que parte do simples para o complexo, tentando criar uma pluralidade de pontos, ligados entre si, na perspectiva de David Ausubel (MOREIRA, 2011[1]). Uma perspectiva que admite uma pluralidade de caminhos e uma complexa rede de interações possíveis, que permitam conectar “pontos quentes” dos modelos mentais dos estudantes, favorecendo assim a formação de aprendizagens significativas, para além das abordagens tradicionais livrescas, propedêuticas, enciclopédicas e descontextualizadas.  Importante considerar esses pontos quando sabemos que “nem sempre o caminho mais ‘curto’ é aquele que leva em conta o processo de aprendizagem dos alunos”[2]. É um investimento pesado no processo de diferenciação progressiva, que permite subir vários degraus desde a simples alfabetização científica até o nível do letramento científico, ou seja, nos permite viver e ler o mundo também com o suporte da Ciência.

As escolhas fundamentais que permeiam essa proposta de um currículo crítico em Ciências, na nossa perspectiva deve apontar para:

  • Favorecer a construção da aprendizagem significativa (compreensiva), privilegiando-a em detrimento das aprendizagens meramente mecânicas ou memorísticas;
  • Valorizar os conhecimentos prévios dos estudantes, entendendo que é a partir deles que se dá a representação do estado das coisas e a compreensão do mundo, pelos estudantes;
  • Adotar a diversificação de estratégias didáticas, visando estabelecer dinâmicas que promovam a “transposição didática”, a aprendizagem significativa dos conteúdos, considerando a diversidade de contextos de ensino, a faixa etária dos estudantes e o nível de desenvolvimento operatório de cada grupo;

Acreditamos que essas propostas possam garantir o apreço pela Ciência, não como uma forma de conhecimento hierarquicamente superior, mas uma forma de entender e vislumbrar os fenômenos da natureza e do nosso cotidiano.

Quem sabe, assim, não conseguimos ajudar a superar visões comuns do senso comum, que entendem que a chuva e o pé no chão frio causam gripe e que a “Lei de Murphy” está à espreita em cada esquina para “assaltar” os incautos?

Em tempo… Ficou em dúvida sobre qual das imagens representa um “Akranoplano”? É porque à medida que vamos aprendendo sobre veículos aéreos, marítimos ou híbridos, nosso modelo mental vai sofrendo um processo de diferenciação progressiva, que nos permite acrescentar “camadas” de complexidade aos nossos saberes e, consequentemente, nos torna mais capazes de diferenciar, da esquerda para a direita de cima para baixo: um hovercraft , um hidroavião, outro hidroavião, finalmente o akranoplano[3] (o “monstro” do mar cáspio), o avião “beluga” de carga, um carro voador(veículo híbrido), um hidrofólio, um convertiplano(hibrido de avião e helicóptero) e o Airbus ZERO (avião ecológico sem emissões de poluentes).

*Tito Tortori é biólogo e professor de Ciências e Biologia da EDEM desde 1998. Apaixonado pelo conhecimento científico e Mestre em Ensino de Biociências e Saúde pela FIOCRUZ, é “caçador” de aprendizagens significativas e estratégias didáticas inovadoras, como o projeto MUDAMATA, o “Jogo da tabela periódica”, o cultivo de microrganismos, a dinâmica da “queda da torrada” versus a “lei de Murphy” e o experimento das “bolhas explosivas”.


[1] BRASIL. INTRODUÇÃO AOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf>. Acesso em: 20 abril 2016.

[2] MOREIRA, Marco Antonio. APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA: UM CONCEITO SUBJACENTE. Aprendizagem Significativa em Revista/Meaningful Learning Review – V1(3), pp. 25-46, 2011. Disponível em:< https://lief.if.ufrgs.br/pub/cref/pe_Goulart/Material_de_Apoio/Referencial%20Teorico%20-%20Artigos/Aprendizagem%20Significativa.pdf>. Acesso em: 25 abril 2016.

[3] Idem, p.75

[4] https://cnnportugal.iol.pt/aeronaves/avioes/o-monstro-do-mar-caspio-uma-aeronave-marinha-do-tempo-da-guerra-fria-ressuscita/20220130/61f2db340cf2c7ea0f15aa45

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