por Paula Martini e Talita Figueiredo*
Há muitos assuntos urgentes na relação de crianças e adolescentes com o celular: saúde mental e autoimagem, segurança digital e acesso a conteúdos inadequados, cyberbullying, propagação de discurso de ódio e extremismos… Como bem definiu o pediatra Daniel Becker em palestra na EDEM, o uso dos celulares por crianças e adolescentes é um dos fatores mais complexos da parentalidade contemporânea.
Para este primeiro artigo da série sobre letramento digital e educação midiática, escolhemos falar sobre segurança digital e acesso a conteúdos inadequados – e ofertar um pequeno guia prático (e um abraço) a quem se sente perdido e não sabe por onde começar.
Mas antes, consideramos fundamental desnaturalizar a ideia de nativos digitais. Competência técnica e instrumental para lidar com as tecnologias não significa competência crítica para fazer um uso ético e saudável desses equipamentos conectados.
As crianças são vulneráveis, segundo a lei, e não têm ainda maturidade para fazer algumas escolhas. O córtex pré-frontal, a região de nosso cérebro responsável pela nossa regulação emocional e pela avaliação de risco, por exemplo, só fica completamente maduro por volta dos 25 anos de idade. É injusto exigir e esperar que os mais jovens sejam capazes de, sozinhos, enfrentar os mecanismos que rodam por trás das telas – quando nem nós mesmos conseguimos escapar.
As grandes empresas de tecnologia utilizam recursos de psicologia comportamental (os mesmos das máquinas caça-níqueis), movidos a dopamina, para capturar nossa atenção e nos manter conectados o maior tempo possível. É assim que ganham dinheiro as plataformas que se dizem gratuitas. Vale aquela máxima de que “quando o serviço é grátis, o produto somos nós”.
Também a pandemia teve reflexo importante no uso de celulares, antecipando a idade em que os pequenos ganharam celular próprio, aumentando os tipos e tempo de uso e afetando combinados familiares. E agora? Como agir? Calma, que a batalha não está perdida. Podemos rever e retomar combinados, criar novos, e até nos beneficiarmos, nós mesmos, de comportamentos que visam o uso ético, seguro e saudável dos celulares.
E, para um uso mais seguro das tecnologias digitais pelas crianças e adolescentes, três palavras são chave: combinados, configurações e diálogo.
Além de propor atividades offline e fazer combinados sobre o tempo de tela, algo que costuma funcionar bem é sinalizar com antecedência quando o tempo combinado estiver se aproximando do fim. Isso ajuda a criança a manejar a frustração (quem gosta de interromper algo prazeroso? ainda mais algo criado unicamente para ser prazeroso e aditivo, como as telas?).
E, daí, sentar e fazer o nosso importantíssimo dever de casa: investir tempo focado (num primeiro momento, entre 2 e 3 horas)em um cuidado minucioso com as configurações de todos os aparelhos celulares, tablets e computadores utilizados pela criança ou adolescente – tanto os itens próprios quanto os dos familiares.
Caso a criança ou adolescente tenha “herdado” aparelho de alguém, ele deve ser inteiramente formatado, pois os cookies e rastros digitais estão todos “viciados” por um uso adulto. Busque tutoriais na internet, pesquise, crie novo ID Apple no caso de iPhone… enfim: corra atrás. É apenas o início do dever de casa mais importante que você tem a fazer, se quer evitar que sua filha ou filho acesse conteúdos inadequados à idade. Sim, também estamos falando de pornografia e violência.
(E, sim, independente de todo o nosso cuidado, eles terão ou já tiveram acesso a esse tipo de conteúdo através de amigos. Daí a importância do diálogo. E de percebermos que o cuidado digital é pessoal e é também um pacto coletivo, como a vacinação. Somos todos responsáveis.)
Seguindo com o dever de casa, é hora de cuidar do que sua filha ou filho pode encontrar nas buscas do Google e no YouTube (que pertence ao Google, sempre bom lembrar).
REGRA DE OURO: a criança ou adolescente deve sempre usar sua própria Conta do Google (que foi configurada pelos pais). Deve sempre se logar no navegador (recomendamos o Chrome) e no YouTube, inclusive ao utilizar o aparelho de terceiros (no caso, o seu, certo? alterne as contas a cada uso). Fundamental.
Falamos tanto de Google porque um de seus serviços é o Google Family Link, app de controle parental que vai vincular a Conta do Google da sua filha/filho à sua conta e possibilitar que você faça todas as configurações, limitando tempo de uso e estipulando a faixa etária, para que os conteúdos oferecidos sejam adequados. O YouTube Kids tem uma navegação voltada para crianças muito pequenas, então é melhor usar o YouTube normal, mas com as configurações especiais.
Agora a dica: deixe aflorar o nerd que te habita e investigue minuciosamente cada item das configurações, tanto no Family Link quanto na Conta do Google. Porque a Alphabet/Google não é mãe de ninguém, seu modelo de negócio se baseia em venda de atenção, e ela vai dificultar o trabalho. Mas ainda bem que você está dedicando 2 a 3 horas neste primeiro momento, não é mesmo?
Exemplos: é possível (mas bem escondido) retirar os destaques e sugestões na pesquisa do Google; é possível (mas bem escondido) retirar o autoplay dos vídeos do YouTube e manejar o sistema de recomendação. Dá trabalho extra, mas tudo isso é possível e recomendado.
Lembrando que existem muitos outros aplicativos de controle parental, e que este primeiro cuidado é o básico do básico. A partir daí, sugerimos reservar períodos de 1 hora para cuidar aprofundadamente das configurações de cada plataforma utilizada pela sua criança ou adolescente: TikTok, Netflix, Minecraft, Fortnite, Instagram, jogos em rede em geral. Atenção extra aos que permitem chat, por motivos óbvios, dentre os quais pedofilia.
Para finalizar, indicamos o conteúdo destes profissionais, projetos e instituições que apoiam famílias e educadores nesta desafiadora – porém recompensadora – tarefa de educar pessoas em um mundo digital regido por algoritmos (e em breve por Inteligência Artificial, mas isso é assunto para outro post).
http://instagram.com/sheylli
http://instagram.com/gabimobo
http://instagram.com/safernetbr
http://instagram.com/educamidia
http://instagram.com/criancaeconsumo
http://instagram.com/internetdaspessoas
http://instagram.com/veroinstituto
http://instagram.com/commonsenseorg (em inglês)
* Paula Martini é pesquisadora, educadora e palestrante, interessada pelos aspectos humanos da transformação digital, área de atuação desde 2005. Fundadora da iniciativa de educação digital Internet das Pessoas. Criadora e professora do curso de Educação Midiática do Polo Educacional SESC. Mãe do Arthur, de 8 anos.
* Talita Figueiredo é jornalista, mestre em Ciência da Informação, doutoranda em Ciência da Informação. Pesquisa o uso de tecnologias por crianças. Mãe do Tiago, de 11 anos.